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Na gaveta da escrivaninha


Uma luz dourada delineava a porta entreaberta quando eu a empurrei devagar, forçosamente devagar, porque permanecia empenada o ano inteiro. Apesar disso, não se ouviu qualquer barulho.

A janela alta estava tapada com o cortinado mas deixava entrar alguma da luz do candeeiro da rua, só para, logo ao entrar, se dissolver na luz do candeeiro da mesa.
Era uma mesa antiga, de uma madeira que eu não sabia nomear, mas que parecia ter trazido nela segredos dos bosques perdidos de onde viera. Segredos diferentes dos daquela mulher, que ela guardava nas inúmeras gavetinhas daquela escrivaninha do canto… Ou talvez não tão diferentes assim.
Entrei na biblioteca e olhei os livros, hóspedes de honra daquela casa, ou mesmo os seus reais donos… tapavam paredes inteiras, prolongavam-se pelas mesas e espalhavam-se pelo sofá, naquela espécie de caos que era uma extensão dela.
Ela adormecera ao lado de um livro aberto, a sua letra fluida rabiscada no caderno preto com que sempre andava. Tinha a cabeça pousada no braço esquerdo, a mão pousada na cabeça; adormecia sempre assim, como as imagens das carpideiras do antigo Egipto. Porquê ou por quem ela chorava, ninguém sabia; talvez fosse um dos segredos da escrivaninha.

Olhei o livro aberto.
Nunca gostei de ver livros deixados abertos. Parecia que se evolava o seu conteúdo, a sua essência.
Aproximei-me para o fechar. Emanava dele o cheiro típico dos livros antigos - adocicado, quente, sensual…fazia-me pensar numa qualquer espécie rara de baunilha. O mesmo cheiro que ela parecia ter colado à pele. Um toque de mistério.
Cheiras a mistério. - dissera-lhe um dia.
Ela riu.
Mistério? E a que cheira o mistério? 
A livros antigos.

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