Quando vou nos transportes públicos e alguém se senta perto, ou passa por mim, com um livro na mão, confesso que tenho o defeito de me esforçar para ver que livro é.
Em minha defesa, sou o mais subtil possível, e bem que resmungo para mim que não devia olhar tanto para o que os outros estão a ler. Mas a maior parte das vezes resmungo porque não consigo perceber que leitura é.
Quando trouxe da biblioteca estes dois livros que tenho aqui em casa, lembrei-me de um outro que vi nas mãos de uma mulher que seguia ao meu lado no metro - também era da biblioteca, e estava todo esfarrapado de tanto uso, a capa rasgada quase sem cor. Era A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón.
O livro de Ossip Mandelstam é uma edição de 1996, e está como novo; parece que o trouxe da editora. Nem aquela marca ao longo da lombada (a ruga do sorriso que o livro faz ao ser lido), ele sequer tem.
Oh, Mandelstam, continuas esquecido no mundo?
Eu também li o livro de Zafón, mas entristece-me que a fala de Mandelstam esteja guardada mas não lembrada, não repetida, não divulgada.
Gostei muito da poesia, comoveu-me a vida que lhe coube, mas a prosa foi uma surpresa. Casaco de Peles ou Súkharevka fizeram-me ter vontade de permanecer no meio daquelas palavras, de repetir a leitura da fala do poeta.
Súkharevka não começa de chofre. Tem uns acessos largos e graduais e vai estreitando devagar o seu funil violento para dentro do comércio impetuoso. A calçada torna-se cada vez mais áspera, a rua ferve de bossas e buracos. A feira mostra-se impaciente, mulheraça compra-e-venda de bochechas rosadas que ainda não seduziu ninguém para os seus domínios mas já estende a tralha sobre as grandes lajes da calçada - livrinhos em leque, brinquedos, colheres de pau, tudo o que é simples e não queima as mãos, ninharias, um desbarato de artigos.
(...)
Ossip Mandesltam, Súkharevka, in Guarda Minha Fala Para Sempre
Comentários
Enviar um comentário