Li um livro que não quero largar. Vou metê-lo na mala e andar na companhia de Apronenia Avitia; chamá-la para falar comigo quando me sentir sozinha.
Às vezes um livro na mão desdobra-se - é o registo minimal de uma mulher que passou dos cinquenta; é um retrato parcial da Roma do século IV; é a descrição total de uma pessoa num mínimo de palavras; é o dissolver da personagem em mim, e do tempo entre nós.
Há um movimento no tempo de cada vez que se lê relatos de um passado longínquo tão bem escritos no presente; as fronteiras esbatem-se (lembro o Memórias de Adriano). Lia-o no autocarro, e quando levantei os olhos das páginas, as pessoas lá fora na rua eram o eco daquelas no papel; outras roupas, outro cenário, mas as pessoas... emanações do passado, espécie de fantasmas.
Se não é a tal magia, o que será?
E quanto a Apronenia... vou mandar a humildade às urtigas - Apronenia sou eu.
A mulher que não escreve a história do tempo em que vive, mas apenas a sua (será que intui que essa é a perene, e a outra tão-só transitória?).
LXXIII. Objectos conservados do passado
Com P. Saufeius, contámos os objectos que tínhamos conservado do passado e cuja visão nos comovia.
Um pedaço de pano amarelo, do amarelo que se extrai das folhas de camomila.
Duas tábuas de Q. Alcimius onde nem três palavras havia.
O carro de duas rodas em restauro.
Um pião infantil de um azul tão desbotado que já está quase branco.
As unhas e o cabelo de Papianilha.
Publius diz:
- O único objecto do passado é cada noite em que brilha a lua cheia, e o chão seco, sem sombra de um vestígio.
Pascal Quignard, in As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia
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