Avançar para o conteúdo principal

Recado #22 (Pedaços de mim na fala dos outros #23)

 Porque não escreves?
Quando ontem me fizeram esta pergunta, apercebi-me de como ela me é repetida de tempos a tempos por uma pessoa diferente, como um eco.
A minha resposta é vaga ou silenciosa, denota provavelmente insegurança.
Mas o que se responde a uma pergunta destas? Diz-se que não se tem jeito, que lemos o suficiente para nos apercebermos de que não sabemos escrever... Que está tudo escrito, que hoje o que fazemos são apenas adaptações... Que não se tem vida suficiente.
Mas e isso importa?
Melhor seria deixar de lado as constantes e impeditivas racionalizações e somente escrever.

Pensa antes nisto:

I began typing, not with the idea of writing a formal poem, but stating my imaginative sympathies, whatever they were worth. As my loves were impractical and my thoughts relatively unworldly, I had nothing to gain, only the pleasure of enjoying on paper those sympathies most intimate to myself and most awkward in the great world of family, formal education, business and current literature.


Allen Ginsberg

Comentários

  1. hmm, vários pontos. primeiro, quero deixar claro que, para mim, associo o escrever a uma coisa triste, pobre, sofredora. é um exercício autofágico que não recomendo a ninguém para além do lado terapêutico da escrita [sim, também pode ser uma terapia]. o dado está em conhecer quando ela nos faz bem, ou quando se torna patológico... vários casos... Sebald tem um livro que dá a conhecer alguns, O Caminhante Solitário.

    a leitura, por sua vez, associo ao prazer. a vários. mas falemos do que o post fala.

    porque «Não se tem vida suficiente»... não sei se é preciso viver um grande amor, uma grande derrota ou fazer uma viagem intergaláctica para escrever boa literatura. opiniões, avulso. o Lobo Antunes é da opinião que, tipo que nunca fodeu, não pode ter criado boa literatura. o Coppola é da opinião, ou foi da opinião, que dificilmente um tipo que nasça num berço de ouro será capaz de criar arte.

    acho que não se ter vida suficiente é perfeito para aquele tipo de literatura mais alternativa, se assim podemos dizer. aquela coisa racional do livro dentro do livro. o existencialismo. ainda ontem fui ver o último filme do Moretti, Mia Madre, e aquilo é assim. e andam por lá os Anjos do Wenders. :D

    por último, eu gostava de escrever um livro. mas tenho uma relação difícil com a escrita. nem sei se use, para o que tenho a dizer, a prosa ou a poesia. que género se adequaria melhor. por um lado, a prosa traz consigo uma teoria. e eu adoro teorizar. no outro oposto, a poesia, dá-te um maior poder de imaginação. é quase lúdico até. mas depois existem coisas a que não consigo fechar os olhos. como a coerência entre a realidade da ficção e a minha realidade, que nem sempre colidem, como é desejável. e um sem número de problemas técnicos. não me atenho muito a essa ideia de que «já está tudo feito», ou de que «existem pessoas que escrevem tão maravilhosamente, porque vou eu escrever ou fazer que escrevo?»; és uma voz. podes não ser a descoberta da roda, mas és uma voz. e importa juntar. e uma voz pode ser bem recebida, passar despercebida, triunfar, falha redondamente no que se propusera. não interessa, o que importa é tentar, escrever, como ralhava o Virgílio Ferreira a esses saiinhos aburguesados feitos críticos de domingo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Isso é um bocado aquela ideia de que as pessoas felizes não têm história ;)
      Não sei se é preciso estar miserável para se escrever bem, ou escrever de todo; acho que é preciso estar atento e ter alguma vida - e se jogo, no post, com a ideia de não ter vida suficiente, é porque no geral as pessoas acham que é preciso "viver para contá-la". Mas é claro que essa vida pode ser apenas (ou quase exclusivamente) interior; boas ideias, bem pensadas, fruto de observação e pensamento. Há um mundo sobre o qual escrever, e o mais original é o interior. Parece-me. :)

      Ahah, salvo erro, o Lobo Antunes disse isso em relação ao Fernando Pessoa, que é um escritor que se deu ao luxo de ser mais do que um... E o Coppola nunca leu Nuno Bragança, está-se mesmo a ver :P

      De resto, essas razões que coloquei no post, deixei-as num recado para mim, para me lembrar que no fundo são secundárias, que o escrever não está condicionado por nada disso. Porque não sei se quero escrever um livro, sei que gosto de escrever e que dou por mim a fazê-lo. Claro que tenho sempre muitas dúvidas (e isto seria um novo post), mas o excerto do Ginsberg que coloquei quase parece ter sido escrito para mim. :)

      Poesia, para mim, é para ler. A minha voz (na medida do possível) gosta mais da prosa. Mas entendo o que dizes. :)
      Se gostarias de escrever um livro, devolvo-te o incentivo - tenta :) Talvez quando o começares a fazer, te decidas naturalmente pela prosa ou pela poesia.

      É bom, o filme? Com os anjos do Wenders, deve ser. :)



      Eliminar
    2. eu gostava de escrever UM livro, apenas um. depois calava-me. tenho os livros em alta estima. :) e um sentido quase mitológico da «obra», ao modo de Tarantino, que diz completar o seu décimo e arrumar as botas.

      fazer disso profissão, não, argh!
      poeta, sim. poderia escrever dez livros.

      mas, mas, mas, o que tenho eu a dizer ao mundo? nada de especial. inquietações interiores todos temos; vidas prácticas também; mas há as que se destacam... para já, a minha vida não é suficiente para escrever. mas, hei, eu não faço disto um drama sequer. não me enfeitiça a ideia de dar autógrafos, tal como não me agrada a ideia de ter um discreto séquito de intelectuais a abençoar-me o dia da morte. feriado nacional, talvez? novo Camões? nada disso. mais terreno.

      tenho de encontrar o humor... bons diálogos...

      o filme do moretti não é bom, é EXTRAORDINÁRIO. :) os anjos do Wenders aparecem a propósito de, vejamos, é um tributo. vemos a estreia de um filme, e percebemos pelos cartazes que é o Asas do Desejo. há uma fila interminável. Moretti aproveita a «voz interior» do anjo da guarda, à maneira do delicioso original de Wenders, para pensar uma personagem, a da realizadora.

      digo-te que foi, durante este ano, o segundo melhor filme que vi numa sala de cinema. e já lá estive quase 40 vezes este ano.

      o primeiro é o de Bruno Dumont, uma paixão 'antiga' minha.

      Mas é claro que essa vida pode ser apenas (ou quase exclusivamente) interior; boas ideias, bem pensadas, fruto de observação e pensamento. Há um mundo sobre o qual escrever, e o mais original é o interior. Parece-me.

      concordo plenamente.

      Eliminar
    3. Para mim, a escrita não tem a ver com escrever livros. Esse é o lado prático, porque temos de comer e pagar contas.
      Mas é uma coisa complicada, porque enquanto leitora dou uma importância ao livro, que não dou se olhar do ponto de vista da escrita em si (sim, eu tenho tendência a complicar...).

      Parece-me que a questão não é o que temos a dizer ao mundo, mas primeiramente o que temos a dizer a nós, a simplesmente exteriorizar. Se alguém nos ouve (ou lê), isso é um bónus. :)
      Nada do mundo pseudo-glamoroso da fama me interessa ou interessaria. Estou a milhas; tanto por não me interessar, quanto por não ter importância para lá chegar, ahah.

      Vou tentar ver esse filme. :)

      ;) Difícil é conseguir a alquimia.

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Divagação #3 (sobre quartos)

O lugar perfeito para escrever sobre um quarto que seja seu, é na casa de outros. O dia propício, é aquele que inicia com um superior de hierarquia familiar a colocar-te  no lugar que, segundo ele, te pertence - o da obediência à sua vontade. Já repeti que por vezes os livros nos são tão próximos, que não há o que escrever sobre eles. Ou haverá, apenas não lhe sentimos a necessidade; são mais sentidos que pensados, se o posso dizer. Um quarto que seja seu , de Virginia Woolf, apesar de tudo, não é um desses. Não sei se existirão muitos livros que se aproximem com tanta perspicácia de questões que já coloquei sobre um assunto específico, de situações gritantes ou subtis das quais já me apercebi. Que retrate mesmo parte da minha realidade exterior. E ainda assim, leio-o sem grande emoção. Se calhar mesmo porque já pensei no mesmo; porque a situação da mulher na sociedade vem-me sendo mostrada a partir de casa, porque tenho bons exemplos das dificuldades colocadas às mul...

On reading

André Kertész , 1969 (fonte aqui)

Eu não durmo

(fonte aqui) Eu não durmo, respiro apenas como a raiz sombria  dos astros: raia a laceração sangrenta,   estancada entre o sexo   e a garganta. Eu nunca   durmo,   com a ferida do meu próprio sono.   Às vezes movo as mãos para suster a luz que salta   da boca. Ou a veia negra que irrompe dessa estrela   selvagem implantada   no meio da carne, como no fundo da noite   o buraco forte   do sangue. A veia que me corta de ponta a ponta,   que arrasta todo o escuro do mundo   para a cabeça. Às vezes mexo os dedos como se as unhas   se alumiassem. (...) Nunca sei onde é a noite: uma sala como uma pálpebra negra separa a barragem da luz que suporta a terra. (...) Herberto Helder , Walpurgisnacht