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Para uma noite de calmaria

61.

LAMENTAÇÕES CIGANAS


Estas alamedas fazem parte de uma das muitas metrópoles da Europa em plena decadência ou já mortas. Talvez seja Viena, que já o era desde há muito tempo. Não há tráfego e os ruídos do trabalho são raros. À tarde, os habitantes saem, sobretudo para frequentar confeitarias. Velhos violinistas entoam lamentações ciganas num qualquer lugar. Nada mais interessa. As salas de cinema estão vazias. Fotografias de actores expostas dentro de montras fechadas sem mercadoria. Às vezes, pressentem-se lojas desertas, com densas camadas de pó por todo o lado. Dizia Nisemback ter visto, há alguns anos, numa loja abandonada por um judeu emigrado para o Canadá, um despertador que assinala a hora exacta, não obstante se tratar de um instrumento de corda curta. E não há nenhum sinal sobre o pó que permita suspeitar que alguém vá, secretamente, dar-lhe corda.



62.

A COR DO TEMPO

O convento tinha a forma de uma margarida. Desprendendo-se de uma torre cilíndrica, cada cela formava uma pétala. Entre uma e outra cela, no pouco espaço de muro da torre que permanecia descoberto, havia uma fenda, fechada por um vitral colorido. Conforme a deslocação do sol em redor do convento, no interior do quarto cilíndrico, havia uma luz com a cor que jorrava do vitral que protegia a fenda atingida pelos raios de sol. Se a luz era azul, era meio-dia, cor de laranja era já hora da ceia e assim para todas as outras horas do dia. De noite, a lua substituía o sol. No Inverno, com o céu encoberto, os monges passavam dias e dias sem saber a hora exacta e eram felizes, porque as suas vidas caminhavam de modo desordenado, especialmente no momento do encontro para o canto nocturno. Ou o levantar era demasiado cedo ou demasiado tarde e cada um acabava, assim, por cantar sozinho e os outros depois ou antes dele. Os cânticos solitários inundavam o céu até ao amanhecer.



Tonino Guerra, in Histórias Para uma Noite de Calmaria

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