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Do mental

Não sou essencialmente cerebral, nem sequer uma pessoa muito racional.
Sigo muito mais um fio intuitivo, espontâneo, emocional, do que aquele que o meu pensamento, por vezes demasiado insistente, me fornece. Mas a minha parte mental tem um peso capital em mim. Tenho consciência que tudo deriva dela, tudo nela nasce. Aquilo que apreendo é alimento necessário, ponto de partida para tudo o resto.
Se a minha mente não for estimulada, nada mais se acende em mim. A não ser talvez uma fraca luz de emergência.
O meu pensamento é o passado da minha emoção futura. Se isto fizer sentido para alguém.
É uma mistura quase completamente indestrinçável.

Talvez então seja por isso que tenha gostado tanto do ensaio de Paul Valéry no final do seu O Cemitério Marinho, quanto do poema em sim.
Acho que me revi um bocadinho, diferenças (e dimensões) à parte.

Fascina-me a ideia da obra nunca acabada, pelo trabalho em si, e por ser reflexo provavelmente mais verdadeiro do autor. Ser ela própria indestrinçável deste.
Não será essa a verdadeira obra?

(...) elaborar longamente os poemas, mantê-los entre o ser e o não-ser, durante anos suspensos perante o desejo; cultivar a dúvida, o escrúpulo e os arrependimentos -, de tal forma que uma obra a todo o tempo retomada e refundida a pouco e pouco assuma a secreta importância de uma tarefa de reforma de nós próprios.
(...) Chega-se pelo trabalho ao trabalho. Aos olhos destes amadores de inquietação e perfeição, uma obra nunca estará acabada -, palavra sem nenhum sentido para eles -, apenas abandonada; e este abandono, que a entrega às chamas ou ao público (e quer ele seja efeito do cansaço ou da obrigação de entregar), a seus olhos será uma espécie de acidente comparável à ruptura de uma reflexão que a fadiga, o aborrecimento ou qualquer outra sensação, vem fazer inútil.

Difícil, por entre um ensaio tão estimulante para mim, escolher trechos, mas a minha fome sempre presente de aprender (e que tantas vezes sofre perante as minhas limitações), sorriu ao entender na perfeição estas palavras:

Por isso a Literatura só profundamente me interessa por exercitar o espírito a certas transformações (...)

E se no seu caso essas transformações estão relacionadas directamente à linguagem e a mim a um conteúdo cada vez mais estimulante, a pergunta serve na mesma a ambos, parece-me:

(...) Se o autor se conhece um pouco de mais, se o leitor se faz activo, em que se transforma o prazer, em que se transforma a Literatura?

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