Avançar para o conteúdo principal

Dia do Senhor Tempo

Domingo é para o silêncio.
Para acordar sozinha em casa, abrir a janela, e ver o sol e a chuva a brincarem lá fora enquanto as pessoas dormem.

A casa é um aquário com silêncio no lugar de água; lá dentro, nenhum peixe, apenas eu, a arrastar um pouquinho os pés por entre essa "massa líquida" de silêncio. Tudo o que eu faço, entra nessa massa sem a quebrar, como nada que mergulhe na água a quebra - a música que ponho a tocar, a singular e violenta trovoada num céu de poucas nuvens brancas, que passou enquanto terminava o meu livro (acontecem sempre coisas estranhas quando leio Mircea Eliade), nada rasga o silêncio, que é, para mim, a voz do tempo a transformar-se. Domingo é dia do Senhor Tempo.
O mundo deixa de vir atrás de mim, fica atrás de mim. O tempo movimenta-se de outra maneira.

Domingo é dia de me metamorfosear em gato - sozinha e silenciosa; quieta, mas não parada. Saio do tempo histórico, e tenho o prazer de estar sossegada a pensar, "arrumando" o que deixei espalhado no passado.

Lá fora, o céu deixa tudo cor-de-rosa.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Divagação #3 (sobre quartos)

O lugar perfeito para escrever sobre um quarto que seja seu, é na casa de outros. O dia propício, é aquele que inicia com um superior de hierarquia familiar a colocar-te  no lugar que, segundo ele, te pertence - o da obediência à sua vontade. Já repeti que por vezes os livros nos são tão próximos, que não há o que escrever sobre eles. Ou haverá, apenas não lhe sentimos a necessidade; são mais sentidos que pensados, se o posso dizer. Um quarto que seja seu , de Virginia Woolf, apesar de tudo, não é um desses. Não sei se existirão muitos livros que se aproximem com tanta perspicácia de questões que já coloquei sobre um assunto específico, de situações gritantes ou subtis das quais já me apercebi. Que retrate mesmo parte da minha realidade exterior. E ainda assim, leio-o sem grande emoção. Se calhar mesmo porque já pensei no mesmo; porque a situação da mulher na sociedade vem-me sendo mostrada a partir de casa, porque tenho bons exemplos das dificuldades colocadas às mul...

On reading

André Kertész , 1969 (fonte aqui)

Eu não durmo

(fonte aqui) Eu não durmo, respiro apenas como a raiz sombria  dos astros: raia a laceração sangrenta,   estancada entre o sexo   e a garganta. Eu nunca   durmo,   com a ferida do meu próprio sono.   Às vezes movo as mãos para suster a luz que salta   da boca. Ou a veia negra que irrompe dessa estrela   selvagem implantada   no meio da carne, como no fundo da noite   o buraco forte   do sangue. A veia que me corta de ponta a ponta,   que arrasta todo o escuro do mundo   para a cabeça. Às vezes mexo os dedos como se as unhas   se alumiassem. (...) Nunca sei onde é a noite: uma sala como uma pálpebra negra separa a barragem da luz que suporta a terra. (...) Herberto Helder , Walpurgisnacht