O CHÃO Às vezes acontece-me sentir que o chão existe simultaneamente em vários níveis, como se, poisando eu neles os pés, me interceptasse ao mesmo tempo os tornozelos, os joelhos, a cintura, e, mais abaixo que os primeiros, em diversos outros planos continuasse a caprichar nesse exercício, de tal forma que, por fim, também eu acabasse por me ver multiplicado, distribuindo pés por todos eles, pisando a um só tempo vários níveis, transparentes uns, opacos outros, procurando o próprio cerne da linguagem que, maleável, permeável e o que mais quisermos de adjectivos que a aproximem desse chão, o torna possível, sustentável, e me faz andar sobre ele como o Messias sobre as águas. Luís Miguel Nava , Rebentação , in Poesia Completa 1979-1 994