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Agonia e Ágape

Ter alguns dias livres de internet fora de Lisboa é bastante saudável. Há mais espaço para limpar a casa, visitar familiares, para apreciar o sol e sentarmo-nos no jardim a fazer uma fraca figura tentando pintar uma macieira no caderninho de aguarela...
Há especialmente mais espaço (sobretudo mental) para ler quase de seguida o Ágape, Agonia, de William Gaddis.

Porque é necessária alguma disposição.
Quando cheguei ao posfácio, escrito por Joseph Tabbi, e ele me diz que na «história secreta» do livro se encontra ligação a Thomas Bernhard (em especial ao Betão), eu respondo-lhe: bem, sr Tabbi, isso não é nada secreto, é até algo gritante ao longo do livro.
Porque para além das referências musicais e do "resmungar", é um monólogo cheio de modulações que chegam a ser avassaladoras em certos momentos, de uma fala que enreda com fios que levam de um pensamento a outro, até se estar preso dentro da angústia da personagem como numa teia pegajosa.
É o piano mecânico, não é? De rolos perfurados e  dedinhos de madeira? Daí até aos computadores e à massificação da facilidade que facilita o prazer que por sua vez se procura porque torna tudo mais fácil, foi um pulinho. Mas não foi bem ele, já antes o tear de Jacquard, o pato e o flautista de Vaucanson, as estátuas animadas da ilha de Rodes referidas por Píndaro, as árvores artificiais e as aves canoras fabricadas para o imperador de Bizâncio há mil anos... Se calhar não é nada disto, ou tudo isto é apenas a natureza humana, apenas o destino inevitável que nos alcançará a todos.
Sim, Gibbs, é preciso avisar as pessoas, é preciso informá-las, fazê-las ver - se ao menos houvesse tempo. Se ao menos esta consciência das coisas lhes chegasse tão rápida e clara quanto nos surge na cabeça... E depois há os que já pensaram o que pensámos, que já nos roubaram antes de sequer termos chegado lá.
Há o outro que sou eu; o que poderia ter feito melhor. O que foi arrancado de mim.

Estarei a fazer sentido? Se calhar não sei fazer melhor, talvez me tenha arrancado a mim mesma e esteja presa enquanto os outros me roubam lá fora.
Resta o mais importante - os poucos a quem se chega. Diz Tabbi no final do posfácio:

(...) Contra todas as falsificações, simulações e dissipações do mundo, este foi o consolo que susteve Gaddis durante a última fase da sua escrita: a de que a experiência da colaboração intelectual entre duas ou mais pessoas, o amor fraternal que ele sentia ao recordar um amigo que já não estava entre os vivos, e o disciplinado reconhecimento dos feitos dos escritores do passado, dariam à sua obra uma capacidade de permanência para além das suas próprias, e definitivamente humanas, capacidades de afecto e de invenção.

O que não deixa de me fazer lembrar a sociedade secreta individualizada de que fala Quignard, os que se lêem entre si em silêncio.
Agonia; mas também Ágape.

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