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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2014

O mundo é um palco

Impressões do teatro Mais importante na tragédia para mim é o sexto acto: o reviver dos mortos nas cenas de combate, o corrigir das perucas e dos trajes, o arrancar da faca do coração, o retirar da corda do pescoço, o enfileirar ao lados dos vivos de cara voltada para o público. As reverências um a um e em conjunto: a mão branca na ferida do coração, a respiração da suicida, a cabeça cortada que se inclina. As reverências aos pares: a ira dá a mão à suavidade, olha afável a vítima nos olhos o verdugo, tropeça sem rancor o rebelde ao lado do tirano. O pisar da eternidade pela biqueira dourada da botina. O dispersar das morais pela aba do chapéu. A incorrigível prontidão de tudo reatar no dia seguinte. A entrada em procissão dos mortos muito antes, no terceiro acto,no quarto ou nos entreactos. O mágico regresso dos desaparecidos sem notícia. Pensar que esperaram nos bastidores, sem impaciência, sem tirarem as vestes, lavar as maquilhagens, emociona-me mais

Pedaços de mim na fala dos outros #6

Defender tudo isto. Definir o encontro. A ideia do acaso que o não é, nunca foi, nem será. Encontro então o acaso. De encontrão em encontrão descobrimos afinal a defesa: estar em tudo. Ou seja: ser tudo. Da porcelana ao acetato, do ácido à surpresa. Assim, acima (dentro/fora) de tudo e, afinal, em tudo: defender a inocência do acaso. da surpresa defendida, definida. Encontrar afinal a totalidade num pequeno grão de areia: nele todas as sementes, todo o poder, todo o real, to da a cor, o gosto, o cheiro, o tacto, o som, a última visão. a terceira, o olhos na testa, o triângulo pleno de estrelas, a fechadura inacessível. O último e o primeiro. Eduardo Guerra Carneiro , in Como Quem Não Quer a Coisa

Da beleza #5

Sadhu (fonte aqui) A beleza talvez seja reconhecermos um pedaço de nós naquilo que vemos.

Da beleza #4

Noosphere (fonte aqui)

As minhas festas felizes

(fonte aqui)

Apronenia sou eu

Li um livro que não quero largar. Vou metê-lo na mala e andar na companhia de Apronenia Avitia; chamá-la para falar comigo quando me sentir sozinha. Às vezes um livro na mão desdobra-se - é o registo minimal de uma mulher que passou dos cinquenta; é um retrato parcial da Roma do século IV; é a descrição total de uma pessoa num mínimo de palavras; é o dissolver da personagem em mim, e do tempo entre nós. Há um movimento no tempo de cada vez que se lê relatos de um passado longínquo tão bem escritos no presente; as fronteiras esbatem-se (lembro o  Memórias de Adriano ). Lia-o no autocarro, e quando levantei os olhos das páginas, as pessoas lá fora na rua eram o eco daquelas no papel; outras roupas, outro cenário, mas as pessoas... emanações do passado, espécie de fantasmas. Se não é a tal magia, o que será? E quanto a Apronenia... vou mandar a humildade às urtigas - Apronenia sou eu. A mulher que não escreve a história do tempo em que vive, mas apenas a sua (será que intu

Do meu calendário #2

(fonte aqui) A noite mais longa de onde nasce a luz. O eterno retorno que da morte traz renascimento, tornando uma equivalente ao outro; duas faces da mesma moeda. A minha celebração. (...)  E entre a vida e a morte não havia fronteira nem limite, a morte era outra face da vida, uma outra dimensão mais fascinante. Teolinda Gersão , in Os guarda-chuvas cintilantes

Pedaços de mim na fala dos outros #5

A pequena escrita quotidiana, deixar um risco no tempo, um traço na areia, para provar que estou viva - segunda, terça, quinta, dois, cinco, sete, vinte e quatro, essa obrigação, ou evasão, minuciosa, essa contabilidade estática, passiva, aplicada, metódica, monótona, escolar - oh céus, tive sempre tão pouco a ver com isso, errei sempre na vida as contas todas - mas de onde vem esta íntima convicção de acertar, apesar de tudo, o problema?  Teolinda Gersão , in Os guarda-chuvas cintilantes

Divagação

Uma, duas colheres de cevada na água a ferver, e as voltas da colher a fazerem subir a fita de vapor que dança sozinha até entrar no corpo a adiantar calor. Rescende, como diria Eça. Em mim, o cheiro é a maneira mais rápida de evocar memórias e de criar histórias ( consta que o louco vê mais com o nariz do que com os olhos , não é, Grenouille?), e eu percepciono (subliminarmente) as formas das palavras que gostaria de escrever. Mas elas sempre me fogem, e eu regresso àquelas que outros souberam escolher, apanhar e combinar - com a caneca de cevada ao meu lado, rodeada de cadernos, lápis e papéis ( As folhas de papel espalhadas pela casa ), pego no livro de Teolinda Gersão até ele se calar. Tenho de comprar este livro , anoto. Se pudesse, esta mesma edição, com a capa decorada com a obra de Vieira da Silva. Revejo-me nele em pedaços que se repercutem assim como aqueles de La Machine Optique . Pensei no dia de hoje. Em como os meus olhos se detiveram em tantas coisas primeiro, e a

Lição de vida:

(fonte aqui) Pardon my french.

Betão

Estou aqui como Rudolfo, sem saber como começar. Perdida eventualmente nos meus próprios pensamentos, um a seguir ao outro, um contradizendo o próximo ou o anterior, enredando-me em teias que eles próprios fabricam. Li Betão , do Bernhard, num espaço de tempo muito maior do que leria um qualquer outro livro com menos de cento e vinte páginas. Às vezes tive de fugir dele, mas nunca o quis deixar, antes prolongar a sua leitura. O que talvez diga alguma coisa sobre mim...  Bernhard aprisiona-me aos seus livros, como aprisiona as personagens que lá estão dentro (lembro a prisão de Saurau, e a prisão de Rudolfo, mesmo a prisão que transparecia nos poemas). Deseja-se uma fuga que não é possível, o lugar do qual queremos escapar somos nós. Não importa onde Rudolfo viva, estará sempre preso entre paredes de betão - as da sua mente. Talvez não existam pessoas tão completamente dentro deste negro e perturbador viver como vivem Rudolfo, ou Anna Härdtl, ou Saurau (ou talvez sim). M

Da leitura interminável

(fonte aqui) Isto sou eu. So many books, so little time.

Falas guardadas

Quando vou nos transportes públicos e alguém se senta perto, ou passa por mim, com um livro na mão, confesso que tenho o defeito de me esforçar para ver que livro é. Em minha defesa, sou o mais subtil possível, e bem que resmungo para mim que não devia olhar tanto para o que os outros estão a ler. Mas a maior parte das vezes resmungo porque não consigo perceber que leitura é.  Quando trouxe da biblioteca estes dois livros que tenho aqui em casa, lembrei-me de um outro que vi nas mãos de uma mulher que seguia ao meu lado no metro - também era da biblioteca, e estava todo esfarrapado de tanto uso, a capa rasgada quase sem cor. Era A Sombra do Vento , de Carlos Ruiz Zafón. O livro de Ossip Mandelstam é uma edição de 1996, e está como novo; parece que o trouxe da editora. Nem aquela marca ao longo da lombada (a ruga do sorriso que o livro faz ao ser lido), ele sequer tem. Oh, Mandelstam, continuas esquecido no mundo? Eu também li o livro de Zafón, mas entristece-me que a fala

Do agasalho

E quando está mais chuvoso cá por dentro do que do lado de fora da janela; quando as riscas molhadas do vidro parecem escorrer em mim e o frio se infiltrou sorrateiro pela pele, então eu gosto de ouvir isto. A voz agasalha-me e a música conforta-me. E de repente, a Primavera está mais próxima.

Instantâneo #3

O nome dela é Felicidade. Mas de dentro dela sai tristeza. Sai pelos gestos lentos e pesados, pelos olhos baços que, contaminados, passaram a descobrir o mais ténue vestígio triste na alegria que a rodeia. As cores agridem-na, apenas se sente descansada quando esquecida no cinzento da roupa que veste, o cinzento que ela foi vendo invadi-la - primeiro o cabelo, depois os olhos... até mesmo a pele parece ter ganho um ligeiro tom de cinza. Ela deixa. O mundo já não lhe é feito de contrastes, é apenas um monótono olhar da luz a subir e a descer atrás do nevoeiro. Repetidamente. Do resto, esqueceu-se. Quem lhe deu o nome talvez lhe quisesse fazer lembrar. És tão alegre, tão claro o teu sorriso, meu menino, Não sigas esta ventura que espalha veneno pelo ar, Não, tu não sabes, não sabes o que é este violino, O que é o terror escuro de quem começa a tocar.                                                   Nikolai Gumiliov

Da disposição #3

De noite só quero vestido o tecido dos teus dedos e sobre os ombros a franja do final dos cabelos Sobre os seios quero a marca do sinal dos teus dentes e a vergasta dos teus lábios a doer-me sobre o ventre Nas pernas e no pescoço quero a pressão mais ardente e da saliva o chicote da tua língua dormente Maria Teresa Horta , Poesia Completa

Makes you wonder

Peanuts (fonte aqui) Um dos livros que estou a ler, abrandou-me a leitura. Nada de errado com ele, mas apenas estou a olhar a água e não a mergulhar nela. Por isso, nesta tarde clara que quase mordia de fria, subi a quase infinita calçada (Ana sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada ...) que me premeia com o bonito edifício da "minha" biblioteca municipal. E então, trago um livro de Teolinda Gersão, e um de Ossip Mandelstam, e desço a calçada com a vontade de mergulhar neles a subir. Estou revalidada. Esse é o poder da biblioteca. O Linus tem razão; um lugar que nos deixa trazer livros (livros!) para casa, sem pedir nada em troca... dá que pensar. Não dá?...

O espaço entre

E de repente ocorre-me a ideia de que a imensidão do mundo é pequena o suficiente para caber no espaço entre nós. Lugar de coisas maravilhosas; os cinco sentidos e mais um, multiplicados por dois. O resultado, segredos que se revelam. You may talk. And I may listen. And miracles might happen . Ernest Hemingway

Um Vasco que é Gato

Rondava-me a escrita de um Vasco que é Gato. Eu parei e passei-lhe a mão ainda ao de leve: (...) O nosso encontro com os dias deve produzir centelhas. Dois martelos que partilhem o ferro da sua reabilitação recíproca. (...) O que eu habito é a minha vulnerabilidade. (...) Esta pressa de obsoleto. Que bulimia existe em nós que não nos permite a leveza de não precisar mais? (...) Pois é, cabe-nos o desvão onde é necessário nadar em ácidos. Estamos nus, e só o que formos nos ilibará da corrosão. (...) Urgência de urgência, soro administrado por contágio, assim nos prolongamos como comboios sobre o mar. Vasco Gato , in Rusga P.S. - Sensível como sou à sensação física, o prazer, acrescentado à leitura, de pegar no livro. Espécie de caderno tão simples que chega a ser voluptuoso.

Recado #2

ANOTHER NOTE TO SELF: (fonte aqui)

Na gaveta da escrivaninha

Uma luz dourada delineava a porta entreaberta quando eu a empurrei devagar, forçosamente devagar, porque permanecia empenada o ano inteiro. Apesar disso, não se ouviu qualquer barulho. A janela alta estava tapada com o cortinado mas deixava entrar alguma da luz do candeeiro da rua, só para, logo ao entrar , se dissolver na luz do candee iro da mesa. Era uma mesa antiga, de uma madeira que eu não sabia nomear, mas que parecia ter trazido nela segredos dos bosques perdidos de onde viera. Segredos diferentes dos daquela mulher, que ela guardava nas inúmeras gavetinhas daquela escrivaninha do canto… Ou talvez não tão diferentes assim. Entrei na biblioteca e olhei os livros, hóspedes de honra daquela casa, ou mesmo os seus reais donos… tapavam paredes inteiras, prolongavam-se pelas mesas e espalhavam-se pelo sofá, naquela espécie de caos que era uma extensão dela. Ela adormecera ao lado de um livro aberto, a sua letra fluida rabiscada no caderno preto com que sempre andava. Tin

Da melancolia

_______________ nada é mais rápido do que a melancolia; é traiçoeira no ataque, inopinadamente ressurge diante dos olhos, e o turbilhão é tal que se extingue sem linhas precisas. O facto principal, determinante, é que a nossa forma, a forma com que somos receptivos ou agimos, é um corpo, todo o afecto nasce, perdura e se extingue nessa forma; a separação física dos corpos pode ser, por vezes, o facto mais notável: aquele contra o qual o conceito perde força e paciência. De nada me vale querer ser razoável. Quando me dou à nostalgia é triste de morrer. (…) Maria Gabriela Llansol , in Inquérito às Quatro Confidências - Diário III De nada me vale querer ser razoável.  Sim, de nada vale. Mas eventualmente, felizmente, passa.

Se os conselhos fossem bons, davam-se num blog (#3)

(fonte aqui)

A valsa da cidade

Há alguma (ou muita) coisa nesta música que me faz lembrar as sombras de um filme de Tim Burton. Ouço-a a ver as figuras cinzentas numa valsa macabra, repetida todos os dias. E a sabê-los vivos e a vê-los na morte . E não consigo deixar de a ouvir.

Da espera

34 Não há mais sublime sedução do que saber esperar por alguém. Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles A boca, os olhos , ou os lábios. Treinar-se a respirar Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia. Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta. Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar Num livro uma página estrategicamente aberta. Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra Que te quer. Soprá-la para dentro de ti __________ ________________ até que a dor alegre recomece. Maria Gabriela Llansol , in O Começo de um Livro é Precioso

Instantâneo #2

As folhas de outono caíram durante todo o dia. Espécie de suave chuva em dia seco. Desciam dos troncos em bando, esvoaçando como borboletas douradas que atapetassem a cidade com o sono das árvores.