Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2015

Música à noite #5

Gostava de ser árvore nos dias de folga

Uma mulher é tanto mais doce não quanto mais bela, mas quanto mais vegetal, mais feminina for . Friedrich Schegel , in  Telhados de Vidro Nº 19 Gostava de ser árvore nos dias de folga. Esticar os braços para cima e as raízes para baixo até chegar aos extremos e tocar uns nas outras, dar a volta ao mundo. Por dentro e por fora. Sentir o vento entre as folhas e responder a quem me sopra. Ter aos meus pés quem ouça a conversa. Brilhar na luz do sol, mudar de cor e renascer. Baloiçar com o vento e acenar-lhe quando ele passa (o Dylan Thomas sabia umas coisas). Guardar pássaros à noite dentro de mim e senti-los voar ao amanhecer. Ter raízes, mas fluir (a Virginia Woolf também). Gostava de ser árvore nos dias de folga. Mas não há descanso para quem é bicho humano.

Breve divagação #3

Por cada curva que se dobra, uma nova mais apertada. Os corredores do labirinto estreitam-se até doerem nos ossos. Não houve uma Ariadne simpática que entregasse um novelo; aqui o caminho é feito tropeçando no escuro e escorregando nos limos. Por cada saída falhada, um novo pedaço é acrescentado.

Se os conselhos fossem bons, davam-se num blog (#4)

Breve divagação #2

Sentei-me à frente da janela do computador e pousei os dedos no teclado para escrever. Mas a luz artificial ofuscou-me; de tantos mundos se desdobrarem frente aos meus olhos, eles deixaram de focar, e não vi nada. Para escrever, preciso olhar com atenção. Antes de os dedos tocarem nas teclas, precisam pousar na pele.

A olhar as estrelas

«Olha para os milhões de estrelas», disse ele. «Fazem um padrão no céu. É um padrão de letras que soletram uma palavra. Uma noite hei-de olhar lá para cima e ler essa palavra.» Dylan Thomas , O Rato e a Mulher , in Uma Visão do Mar e Outras Histórias 

Do mau uso que se faz de boas palavras

(Sim, eu sabia que a palavra "foder" se podia usar como um palavrão. Quando a ouvi e li pela primeira vez em  Lady Chatterly , disse ao Hugh que  adorava  a palavra. O Hugh fez uma careta e disse-me como era utilizada normalmente.  Bon .)" Anaïs Nin ,  carta a Henry Miller de 4 de Agosto de 1932

Correspondência

Ontem estive com esta edição na mão. A pensar que este velhinho meio encolhido numa cadeira, agarrado a uma bengala como quem espera a vez no consultório médico, dificilmente encaixa no Henry Miller que transparece nas cartas que terminei de ler. Ou no que escreve o único livro que até hoje li dele, O Colosso de Maroussi . Mas isso é só um truque da imagem, decerto é um trompe l'oeil que o corpo cria com a ajuda do tempo (isso, e o facto de não conseguir distinguir o livro no colo; essa é sempre uma boa pista). As cartas entre Miller e Anaïs Nin parecem-me de natureza rara, seja porque são poucas as pessoas que se dão ao próximo como eles se deram, ou que são tão honestas para viver a vida como eles fizeram; ou simplesmente porque é raro encontrar alguém que nos desperte e que nos eleve como um encontrou no outro. De correspondência entre escritores, não se esperam cartas mal escritas, mas estas espelham tão bem os autores, que quase vemos (assim como num filme) o crescime

O mundo precisa ler Dylan Thomas

(...) And I am dumb to tell the hanging man How of may clay is made the hangman's lime. (...) Dylan Thomas , The force that through the green fuse drives the flower And death shall have no dominion. Dead man naked they shall be one With the man in the wind and the west moon;  When their bones are picked clean and the clean bones gone, They shall have stars at elbow and foot;  Though they go mad they shall be sane, Though they sink through the sea they shall rise again;  Though lovers be lost love shall not;  And death shall have no dominion. (...) Dylan Thomas ,  And death shall have no dominion O mundo precisa ler Dylan Thomas.

Gaiolas, chaves e toques

No dia seguinte à música dos Arcade Fire, deparo-me com isto: Algures há Alguém a escrever Cartas e poemas para mim Alguém à espera da minha libertação Uma mulher que me alcança entre as grades? Já não acredito em chaves Só no toque E. Ethelbert Miller , in Falta de Ar Existem coisas que reforçam a minha crença de que não há acasos. E cá estou a escrever.

Lição de latim

Tenho vindo a pensar em retomar o estudo de uma ou outra língua estrangeira que deixei ganhar ferrugem. Se calhar devia acrescentar à lista o latim...  arrisca a consciência. Mas então lembro-me das aulas, que pareciam mais ou menos assim: E perco a coragem.

Em modo 'repeat'

Hoje ouvi isto, e não consigo deixar de ouvir.

Espanto

E de Espanto consagraram-me ao espanto que de minúsculo há no mar e ímpar sobre a pele criança circuncidada a fogo e morte (no céu da boca a memória absurda das abóbadas) mais que na cidade a matriz dos arranha-céus líquidos muito mais que nos cartões as clandestinas chagas digitais o espanto permanece por frestas e por ombros qualquer onde e quando Luiza Neto Jorge , in Quarta Dimensão

Domingo em casa

De novo a casa a interferir comigo. Ou eu a interferir com ela - afinal, uma casa são as pessoas que nela habitam, e talvez eu esteja apenas a reagir à imposição de um espaço que por vezes não identifico comigo. Como Alice, comi um bolo mágico, e estou a crescer para lá das paredes internas e invisíveis desta casa. Bato constantemente nos seus limites porque os meus se alargam a cada dia. E então tenho visões de uma casa que não encaixam com esta. A métrica é diferente, o compasso também - os silêncios e as palavras não se ajustam aos meus. Nem a luz nem a sombra, nem a vida (ou a falta dela) dos objectos. Somos nós quem dá valor a tudo o que existe. Somos ainda uma espécie de primeiro homem a dar nome às coisas. E eu preciso nomear o meu mundo. Preciso ler, ler, ler, e conversar, conversar, conversar; depurar e lapidar e melhorar as minhas ideias na troca com os outros. Preciso viver, preciso correr!

Pedaços de mim na fala dos outros #8

De uma maneira geral, não me cabe a mim dizer quem sou - ou que sou isto ou aquilo; pois, ao dizê-lo, limitar-me-ia a acrescentar mais um texto aos meus textos, sem ter qualquer garantia de que esse texto fosse mais verdadeiro; todos nós somos, sobretudo se escrevemos, seres interpretáveis, mas o poder de interpretação é sempre o outro que o tem, nunca somos nós; na qualidade de sujeito, não posso aplicar a mim próprio qualquer predicado, qualquer adjectiv o - sujeito a desconhecer o meu inconsciente que, no entanto, não me é conhecível. E não só não nos podemos pensar a nós próprios em termos de adjectivos, mas até os adjectivos que nos aplicam, nunca os podemos autentificar: eles deixam-nos mudos; são para nós ficções críticas. Roland Barthes , in O Grão da Voz

Enjoy the silence

(fonte aqui)

Breve divagação

Não saio de casa há dias, a não ser para coisas prosaicas. E ainda que essas saídas pudessem resultar em prosa, os meus olhos nada viram quando olharam. Olho pela janela e quase só vejo o céu azul. Quase transparente a esta hora. Preciso caminhar, um longo passeio solitário que me deixe ver . Como Anaïs,  O que eu gosto é do ritmo. Começa com regularidade, harmonia, e termina em êxtase. Anda-se até se andar sobre o mundo . Nestes dias lembro sempre o livro de Peter Handke, A Tarde de um Escritor . 

À volta da escrita

Há um perigo, se não se escrever habitualmente, de se perder o hábito. Estou sempre com medo disso. E quando tu pensas constantemente, a escrever na tua cabeça, a escrever enquanto te despes, lavas os dentes, esfregas a loiça, etc., perturbas-te... e tudo se transforma em lama. Henry Miller , carta a Anaïs Nin de 28 de Março de 1932 Funciono melhor quando não penso. Mas até chegar a esse momento, a minha cabeça já andou na órbita dos astros. Penso demasiado - é  aí que estou outra vez, à volta da escrita como se do Sol se tratasse; se me deixo ofuscar, transformo-me num Ícaro, e  caio na lama do Miller. O truque é orbitar como se meditasse; focar-me na escrita e ouvi-la em mim. Não o contrário. E ser certa como com o antibiótico.

Árvores

Árvores O que tentam dizer as árvores No seu silêncio lento e nos seus vagos rumores,  o sentido que têm no lugar onde estão, a reverência, a ressonância, a transparência,  e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea. E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia que entre a água e o espaço se tornou uma leve integridade.  Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes.  Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus ramos. Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes. Não estou, nunca estarei longe desta água pura e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas. Que pura serenidade da memória, que horizontes em torno do poço silencioso! É um canto num sono e o vento e a luz são o hálito de uma criança que sobre um ramo de árvore abraça o mundo. António Ramos Rosa , in Cada Árvore é um Ser para Ser em Nós

Presa na rede

À data do nosso encontro, o oriente estava próximo e nós crentes de que o tínhamos encontrado. Lançámos a rede. Demo-nos conta de que qualquer arte chega de assalto; as ondas, vendo bem, desenham o seu precipício. Assim fazemos, desta feita enrolando os dedos nos cabelos, os olhos um pouco amachucados (temendo não conseguir ver outro oriente). E toda a geografia, deste modo, se vai resumindo ao medo.   Marta Chaves , in Telhados de Vidro Nº 16 Rede lançada, e eu presa nela.

Ouve bem

Pervigilium Veneris Ao redor da lagoa chão de lava Mas límpida a coluna do pescoço Os gritos que darás ainda os ouço Era por ti de noite que eu chamava E rodavam as ilhas   E rodava o desejo na fome de um só poço À vista das crateras que alvoroço na lava desta insónia que as não grava Antes que o sono venha e me retome ou que um sono maior me estenda a rede ouve bem ouve bem o que te digo É só de água afinal que tenho fome Só de lava não mais que sinto sede Que vigília infernal sonhar contigo David Mourão-Ferreira

Insónia

Jess Pauwel (fonte aqui) Vivam as leituras que não nos deixam hibernar. Nada como ficar com uns olhos esbugalhados como aqueles. Não quero paz de espírito a troco de ignorância.

Coisas de que gosto #2

Gosto de escrivaninhas. De janelas, e da luz a entrar por elas. De portas. Águas-furtadas. Clarabóias. Cúpulas. Gosto do cheiro da madeira a ser trabalhada, e do café acabado de fazer na cafeteira (cheiros de infância). Do cheiro do sol na roupa seca do Verão. Gosto de sofás e de mantas e de candeeiros de mesa; das luzes indirectas que revelam mais na sua obliquidade.  Do toque poroso dos livros antigos; do cheiro que têm. De que haja pessoas com o cheiro deles na pele. Gosto de andar na rua de manhã quando está frio; gosto de andar na rua no avesso do dia. Gosto de ler As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia , e sentir que sou eu na Roma antiga com mais de cinquenta anos. Gosto de andar com livros. Gosto do começo do ano.