Avançar para o conteúdo principal

Divagação #3 (sobre quartos)

O lugar perfeito para escrever sobre um quarto que seja seu, é na casa de outros.
O dia propício, é aquele que inicia com um superior de hierarquia familiar a colocar-te  no lugar que, segundo ele, te pertence - o da obediência à sua vontade.


Já repeti que por vezes os livros nos são tão próximos, que não há o que escrever sobre eles. Ou haverá, apenas não lhe sentimos a necessidade; são mais sentidos que pensados, se o posso dizer.
Um quarto que seja seu, de Virginia Woolf, apesar de tudo, não é um desses.
Não sei se existirão muitos livros que se aproximem com tanta perspicácia de questões que já coloquei sobre um assunto específico, de situações gritantes ou subtis das quais já me apercebi. Que retrate mesmo parte da minha realidade exterior. E ainda assim, leio-o sem grande emoção.
Se calhar mesmo porque já pensei no mesmo; porque a situação da mulher na sociedade vem-me sendo mostrada a partir de casa, porque tenho bons exemplos das dificuldades colocadas às mulheres tão próximos quanto os familiares mais chegados. Porque eu mesma passo por dificuldades que regridem aos exemplos já considerados passado para Woolf. Se calhar por isso, não há novidade, não houve deslumbramento.
Claro, haverá aqui algum exagero próprio da proximidade. Nem vivo no século XIX, nem quero minimizar o livro da Woolf, que é um pensamento escrito cheio de inteligência, especialmente se o datarmos. É ainda mais relevante, porque apesar de estarmos hoje em pleno século XXI (como enchemos os pulmões e a boca para dizer), se mantém muito actual. As mulheres fazem tudo (e ainda mais) aquilo que Woolf dizia que fariam - e ainda assim, o patriarcado impera.
Mas não irei por esse caminho - as ramificações do tema aumentaram desde os tempos deste livro, hoje existem muitas mais subtilezas a considerar. E eu sou preguiçosa.

Talvez tudo se resuma a quinhentas libras anuais. Ou talvez não seja isso o mais importante. Nem o mais difícil.
Talvez o mais importante seja a liberdade que só se encontra por dentro. Lembrando Tarkovsky quando dizia que o mais difícil é alcançar uma fé verdadeira e calma, é isso aplicado a nós. 

Neste livro há um espelho que reflecte parte da minha realidade. Ou mesmo toda. Mas não me reflecte a mim. Eu não sou isto.
Deve ser por isso que esperneio tanto quando me tentam engaiolar.

Voltarei ao quarto que quero meu.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Eu não durmo

(fonte aqui) Eu não durmo, respiro apenas como a raiz sombria  dos astros: raia a laceração sangrenta,   estancada entre o sexo   e a garganta. Eu nunca   durmo,   com a ferida do meu próprio sono.   Às vezes movo as mãos para suster a luz que salta   da boca. Ou a veia negra que irrompe dessa estrela   selvagem implantada   no meio da carne, como no fundo da noite   o buraco forte   do sangue. A veia que me corta de ponta a ponta,   que arrasta todo o escuro do mundo   para a cabeça. Às vezes mexo os dedos como se as unhas   se alumiassem. (...) Nunca sei onde é a noite: uma sala como uma pálpebra negra separa a barragem da luz que suporta a terra. (...) Herberto Helder , Walpurgisnacht

Poema à noite #17

Esparsa Não vejo o rosto a ninguém,  cuidais que sou, e não sou.  Sombras que não vão nem vêm,  parece que avante vão.  Entre o doente e o são  mente cada passo a espia;  no meio do claro dia  andais entre lobo e cão.  Sá de Miranda , in  Antologia Poética  

Quem tem medo do Lobo Antunes?

E a chuva não caía, não havia «gotas que acrescentavam vidro ao vidro deformando as roseiras à medida que desciam». Mas os troncos caminhavam para trás na viagem de regresso a Lisboa, enquanto Lobo Antunes invocava fantasmas fechados numa gaveta feita de páginas. Na verdade, não sei se ele os invoca ou se são eles que o escolhem para lhes dar voz, mas deve haver qualquer tipo de transferência entre escritor e personagens, para que lhes consiga chegar tão fundo. Ler António Lobo Antunes não é para meninos; não é para quem gosta de ler histórias, mas para quem quer ler pessoas ( Os romances maus contam histórias, os romances bons mostram-nos a nós mesmos ). É para quem não tem medo de enfrentar o interior de personagens que espelham pedaços de nós (não nas acções; nas fraquezas, nos pensamentos que não gostamos de admitir nem a nós mesmos). É para quem não tem medo de não saber o que dizer dos seus livros, mas tem a coragem de mergulhar neles. Porque afinal, é impossível f