Avançar para o conteúdo principal

Da biblioteca

Hoje foi a última vez que subi a calçada para entrar na minha biblioteca.
Senhores de reinos invasores tomaram para si o edifício cor-de-rosa onde passei horas da mesma cor.

Dizem-me que as coisas mudam, e eu aceito. É uma inevitabilidade da vida, e é bom que exista.
Mas a morte de uma biblioteca nunca é uma coisa positiva; e se a palavra parece demasiado forte, ainda assim é como o sinto - e nem preciso percorrer o caminho que fala dos livros que deixam de estar disponíveis aos olhos dos leitores-aprendizes, e que por isso os não vão poder guiar; e muito menos o das políticas que levaram a este fim.
Basta-me olhar o edifício que tornava a minha biblioteca tão bonita, e caminhar no soalho que range ecos de quando era uma casa nobre. Basta-me sentar numa das mesas encostadas às janelas de vidros pequenos, por onde a luz parecia entrar suavemente, sem fazer barulho, para ler junto com as pessoas.
E saber que foi a última vez.
Basta-me ver a tristeza nos rostos dos funcionários. Não há nada mais triste que um sorriso triste.
Vê-los a arrumar os livros para a mudança, era como se estivessem a sangrar a biblioteca e a pedirem-lhe desculpa.

Para qualquer outra pessoa, nada disto terá talvez importância. E um dia mais tarde, quem sabe se não lhes darei razão.
Mas, sem dar por isso, acabo sempre por pensar na presença do transitório no duradouro. E a perguntar-me o que ficará da biblioteca e das suas pessoas, quando aquelas paredes guardarem coisas menos valiosas. Será que alguém ouvirá o soalho a ranger os nossos ecos?
(A Yourcenar escreveria certamente na perfeição sobre isso)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Eu não durmo

(fonte aqui) Eu não durmo, respiro apenas como a raiz sombria  dos astros: raia a laceração sangrenta,   estancada entre o sexo   e a garganta. Eu nunca   durmo,   com a ferida do meu próprio sono.   Às vezes movo as mãos para suster a luz que salta   da boca. Ou a veia negra que irrompe dessa estrela   selvagem implantada   no meio da carne, como no fundo da noite   o buraco forte   do sangue. A veia que me corta de ponta a ponta,   que arrasta todo o escuro do mundo   para a cabeça. Às vezes mexo os dedos como se as unhas   se alumiassem. (...) Nunca sei onde é a noite: uma sala como uma pálpebra negra separa a barragem da luz que suporta a terra. (...) Herberto Helder , Walpurgisnacht

Poema à noite #17

Esparsa Não vejo o rosto a ninguém,  cuidais que sou, e não sou.  Sombras que não vão nem vêm,  parece que avante vão.  Entre o doente e o são  mente cada passo a espia;  no meio do claro dia  andais entre lobo e cão.  Sá de Miranda , in  Antologia Poética  

Quem tem medo do Lobo Antunes?

E a chuva não caía, não havia «gotas que acrescentavam vidro ao vidro deformando as roseiras à medida que desciam». Mas os troncos caminhavam para trás na viagem de regresso a Lisboa, enquanto Lobo Antunes invocava fantasmas fechados numa gaveta feita de páginas. Na verdade, não sei se ele os invoca ou se são eles que o escolhem para lhes dar voz, mas deve haver qualquer tipo de transferência entre escritor e personagens, para que lhes consiga chegar tão fundo. Ler António Lobo Antunes não é para meninos; não é para quem gosta de ler histórias, mas para quem quer ler pessoas ( Os romances maus contam histórias, os romances bons mostram-nos a nós mesmos ). É para quem não tem medo de enfrentar o interior de personagens que espelham pedaços de nós (não nas acções; nas fraquezas, nos pensamentos que não gostamos de admitir nem a nós mesmos). É para quem não tem medo de não saber o que dizer dos seus livros, mas tem a coragem de mergulhar neles. Porque afinal, é impossível f